quinta-feira, 20 de outubro de 2011

do Dia do Arquivista






Arquivo em Dia de Chuva
Carlos Drummond de Andrade



             Chove. Além de ensopar as pessoas, a chuva desmoraliza as agendas de 
compromissos. Não se cumprem os encontros marcados se a Cidade ficou alagada, os 
carros enguiçaram, os telefones idem. Com o indivíduo preso em casa, a ocasião é boa para 
mexer em papéis, reler cartas esquecidas, rasgar recibos de contas velhas e até mesmo o 
que julgávamos relíquias para a eternidade e são apenas letras fanadas. 
             Arquivo tem isso: ao atingir certas proporções, é necessário jogar fora pelo menos 
um terço do acervo. Uns preferem queimar o passado, outros o atiram à lixeira. Tétrica é a 
opção do Ministério da Educação e Cultura, que preferiu incluir na lista telefônica do Rio o 
telefone 264-6378 com este dado: “Depósito Arquivo Morto”. Haverá nada mais morto do 
que um arquivo morto, conservado em depósito? Imagino fantasmas de requerimentos, 
lêmures de despachos e certidões, abantesmas de atas, tentando forçar as pastas, as gavetas do lúgubre cemitério burocrático, e letreiros fosforescentes nas paredes tristes: “Never more”. “Requiescat in pace.” “Acabou.” 
           Chove. Meu arquivo pessoal já não cabe no apartamento, ou melhor, não cabe em 
mim mesmo. Aproveitarei a chuvarada para despojá-lo do que perdeu importância, se é que 
a teve, e está guardado por negligência. Por que veio parar aqui esse programa de cinema 
do Metro-Copacabana, anunciando Pic-Nic, de William Holden? O Metro foi demolido, o 
ator acaba de morre; não há razão para conservar este farrapo de noite velha. E esses 
cartões com votos de felicidade que, renovando-se a cada ano, perderam a validade, pois 
cada um se referia a um Natal e Ano Novo, e cessou o período de vigência curta. 
            Guardei esta cópia de carta porque me pareceu que devia reservar para meus netos e 
bisnetos a comprovação de uma atitude amadurecida em noite de vigília. Como custou 
escrevê-la. O número de linhas riscadas é maior do que o de linhas definitivas. Que 
significa isso? Nem me lembrava mais do caso, e vou pretender que meus descendentes se 
interessem por ele? Mal consigo explicar a vaidade que me induziu, já não digo a guardar 
esta carta, mas a escrevê-la. Não sinto mais a irritação que a ditou, o empenho literário que 
a poliu. Teria sido tão mais simples não redigi-la. 
            Já esta outra cópia tem a nota: “Não remetida.” Devo ter sofrido influência de André 
Gide, que tinha o hábito de escrever e não botar no Correio. Escrevendo, lavava a alma; 
para que remeter, se a alma já estava lavada? Tarde aprendi que bom mesmo é dar a alma 
como lavada, sem o trabalho de escrever uma linha. Para o chamado escritor, nada melhor, 
afinal de contas, do que não usar a faculdade da escrita. Podem acusá-lo de preguiçoso, de 
incompetente ou das duas coisas ao mesmo tempo; ele tem lá suas razões para furtar-se ao 
árido exercício de converter idéias e sentimentos em palavras apropriadas, e não 
simplesmente aproximadas. 
            Surgem fotografias. Reuniões a que a gente comparece por obrigação e das quais 
não ficou o mais leve traço na vida. Esses cavalheiros, essas senhoras estão inaugurando 
qualquer coisa e sorriem porque convém fazer cara alegre em vez de cara triste ou 
entediada. Há uma fita que vai sendo cortada. Não aparecem, mas discursos detonam como 
de preceito. Não sou eu que estou ali, de roupa escura, sorrindo ou fingindo ouvir, é um ser 
convencional que às vezes tenho de assumir por força da sociedade. Rasgo. 
            Rasgo cartas e bilhetes indiferentes, de pessoas indiferentes, que nem sei mais quem 
são, mas um dia cruzaram na minha vida, deixando uma sombra de papel. Também escrevi 
coisas assim para centenas de pessoas, que talvez a esta hora estejam praticando a mesma 
faxina, graças à chuva. Em algum lugar do Brasil, rasgam-me por efeito de chuva. 
             As correspondências de velhos amigos que se forma ou ainda vivem (que crueldade 
intrínseca nesta palavra: ainda!), estas não deviam ficar misturadas, por mesquinha ordem 
alfabética, a papéis que já não dizem coisa alguma, como de resto a quase totalidade dos 
papéis, tempos depois de escritos. Aquelas me doem porque não usei envoltórios plásticos 
transparentes para conservá-las livres de estrago pelo manuseio e pelo tempo. Devia abrir 
com freqüência maior as pastas em que se encontram. Sei o que essas cartas dizem, mas é 
doce fingir que ignoro o conteúdo, e tomar conhecimento dele por mais uma primeira vez. 
            Onde estão Rodrigo e Aníbal e Mário e Emílio e Manuel e Mílton e Alberto e outros, 
outros? Espalhados sob lápides e inscrições? Não; estão aqui, comigo, a um metro de 
distância, conversáveis, conversando. Sem emissão de voz; a letra é voz, a caligrafia fala. 
              Cartas de pais e irmãos formam outro bloco vivo de acontecimentos, lembranças, 
coisas indeléveis, de uma doçura venenosa, de tão funda. Todos foram-se embora. Todos 
ficaram. Paro de revolver guardados num poço sem fundo, chamado arquivo. A chuva 
começa a serenar. Ainda bem. 

Carlos Drummond de Andrade 
Jornal do Brasil, Caderno B, pág. 7, 19/11/1981

Post dedicado à minha mãe e minha prima,  formadas na doce profissão de arquivista, profissional que refaz o trabalho de Drummond em dias de chuva e de sol, com memórias suas e de pessoas que nunca conheceram...

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