Chove. Além de ensopar as pessoas, a chuva desmoraliza as agendas de
compromissos. Não se cumprem os encontros marcados se a Cidade ficou alagada, os
carros enguiçaram, os telefones idem. Com o indivíduo preso em casa, a ocasião é boa para
mexer em papéis, reler cartas esquecidas, rasgar recibos de contas velhas e até mesmo o
que julgávamos relíquias para a eternidade e são apenas letras fanadas.
Arquivo tem isso: ao atingir certas proporções, é necessário jogar fora pelo menos
um terço do acervo. Uns preferem queimar o passado, outros o atiram à lixeira. Tétrica é a
opção do Ministério da Educação e Cultura, que preferiu incluir na lista telefônica do Rio o
telefone 264-6378 com este dado: “Depósito Arquivo Morto”. Haverá nada mais morto do
que um arquivo morto, conservado em depósito? Imagino fantasmas de requerimentos,
lêmures de despachos e certidões, abantesmas de atas, tentando forçar as pastas, as gavetas do lúgubre cemitério burocrático, e letreiros fosforescentes nas paredes tristes: “Never more”. “Requiescat in pace.” “Acabou.”
Chove. Meu arquivo pessoal já não cabe no apartamento, ou melhor, não cabe em
mim mesmo. Aproveitarei a chuvarada para despojá-lo do que perdeu importância, se é que
a teve, e está guardado por negligência. Por que veio parar aqui esse programa de cinema
do Metro-Copacabana, anunciando Pic-Nic, de William Holden? O Metro foi demolido, o
ator acaba de morre; não há razão para conservar este farrapo de noite velha. E esses
cartões com votos de felicidade que, renovando-se a cada ano, perderam a validade, pois
cada um se referia a um Natal e Ano Novo, e cessou o período de vigência curta.
Guardei esta cópia de carta porque me pareceu que devia reservar para meus netos e
bisnetos a comprovação de uma atitude amadurecida em noite de vigília. Como custou
escrevê-la. O número de linhas riscadas é maior do que o de linhas definitivas. Que
significa isso? Nem me lembrava mais do caso, e vou pretender que meus descendentes se
interessem por ele? Mal consigo explicar a vaidade que me induziu, já não digo a guardar
esta carta, mas a escrevê-la. Não sinto mais a irritação que a ditou, o empenho literário que
a poliu. Teria sido tão mais simples não redigi-la.
Já esta outra cópia tem a nota: “Não remetida.” Devo ter sofrido influência de André
Gide, que tinha o hábito de escrever e não botar no Correio. Escrevendo, lavava a alma;
para que remeter, se a alma já estava lavada? Tarde aprendi que bom mesmo é dar a alma
como lavada, sem o trabalho de escrever uma linha. Para o chamado escritor, nada melhor,
afinal de contas, do que não usar a faculdade da escrita. Podem acusá-lo de preguiçoso, de
incompetente ou das duas coisas ao mesmo tempo; ele tem lá suas razões para furtar-se ao
árido exercício de converter idéias e sentimentos em palavras apropriadas, e não
simplesmente aproximadas.
Surgem fotografias. Reuniões a que a gente comparece por obrigação e das quais
não ficou o mais leve traço na vida. Esses cavalheiros, essas senhoras estão inaugurando
qualquer coisa e sorriem porque convém fazer cara alegre em vez de cara triste ou
entediada. Há uma fita que vai sendo cortada. Não aparecem, mas discursos detonam como
de preceito. Não sou eu que estou ali, de roupa escura, sorrindo ou fingindo ouvir, é um ser
convencional que às vezes tenho de assumir por força da sociedade. Rasgo.
Rasgo cartas e bilhetes indiferentes, de pessoas indiferentes, que nem sei mais quem
são, mas um dia cruzaram na minha vida, deixando uma sombra de papel. Também escrevi
coisas assim para centenas de pessoas, que talvez a esta hora estejam praticando a mesma
faxina, graças à chuva. Em algum lugar do Brasil, rasgam-me por efeito de chuva.
As correspondências de velhos amigos que se forma ou ainda vivem (que crueldade
intrínseca nesta palavra: ainda!), estas não deviam ficar misturadas, por mesquinha ordem
alfabética, a papéis que já não dizem coisa alguma, como de resto a quase totalidade dos
papéis, tempos depois de escritos. Aquelas me doem porque não usei envoltórios plásticos
transparentes para conservá-las livres de estrago pelo manuseio e pelo tempo. Devia abrir
com freqüência maior as pastas em que se encontram. Sei o que essas cartas dizem, mas é
doce fingir que ignoro o conteúdo, e tomar conhecimento dele por mais uma primeira vez.
Onde estão Rodrigo e Aníbal e Mário e Emílio e Manuel e Mílton e Alberto e outros,
outros? Espalhados sob lápides e inscrições? Não; estão aqui, comigo, a um metro de
distância, conversáveis, conversando. Sem emissão de voz; a letra é voz, a caligrafia fala.
Cartas de pais e irmãos formam outro bloco vivo de acontecimentos, lembranças,
coisas indeléveis, de uma doçura venenosa, de tão funda. Todos foram-se embora. Todos
ficaram. Paro de revolver guardados num poço sem fundo, chamado arquivo. A chuva
começa a serenar. Ainda bem.
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, Caderno B, pág. 7, 19/11/1981